Faleceu prematuramente no último dia 25 de fevereiro o renomado e querido Professor Doutor David Bankier Diretor Geral do Instituto de Pesquisas sobre o Holocausto do 'Yad Vashem' - principal memorial do Holocausto, ou Shoá, situado em Jerusalém.
David Bankier nasceu em Zeckendorf na Baviera, Alemanha, em 19 de janeiro de 1947. Era um campo para as chamadas 'disp/aced persons', apelidado de kibutz Or haChaim, onde se encontravam 81 sobreviventes da Shoá, dentre eles os pais de David, nascidos em Kiev e Varsóvia. Seu único desejo era deixar a Europa o quanto antes, depois de terem perdido tudo e todos: "Precisamos ter nosso próprio país, nosso próprio exército. Queremos filhos, recomeçar a vida, superar o horror". Emigraram, pois para Israel. Posteriormente emigraram para a Argentina. David Bankier voltou para Israel, onde ficou para sempre. Cursou a Universidade Hebraica de Jerusalém, onde se doutorou em História Judaica. Sua tese trata da sociedade alemã e do antissemitismo nazista entre 1933 e 1938, temática em que é considerado um dos mais profundos pesquisadores na opinião de muitos historiadores contemporâneos. Razão pela qual se tornou professor e chefe do Departamento de Estudos sobre Antissemitismo e Holocausto no Instituto de Judaísmo Contemporâneo da mesma Universidade.
Durante muitos anos, David Bankier foi professor visitante nas universidades da Inglaterra, EUA, África do Sul, América do Sul, inclusive na Universidade de São Paulo - USP em 1994. Sua estada no Cone Sul favoreceu a publicação de muitos estudos e livros em espanhol.
Yad vashem
O Yad Vashem, que também é um Centro de Documentação e Pesquisa, Pedagogia e Memória da Shoá, foi criado em 1953. Situado no alto do Monte da Recordação em Jerusalém, engloba, no mesmo espaç~ que é um parque encantador o mais amplo centro de. documentação e arquivo, bem como a Escola Internacional para Ensino sobre a Shoá. Eu mesma já tive o privilégio de cursar dois seminários da Escola Internacional em 2008 e 2009. Nesse parque, encontram-se também o Instituto de Pesquisas sobre a Shoá, que era justamente dirigido por David Bankier desde 2000, bem como o famoso Museu da Shoá. É lá que se encontra a 'Ala dos Nomes', onde se pode pesquisar o destino de dois milhões dos seis milhões de vítimas da Shoá.
Pesquisas inovadoras
O foco das pesquisas de Bankier se voltava primordialmente à análise psíquica das pessoas que se engajaram ativamente na ideologia nazista, tornando-se perpetradores da 'solução final' - a sobejamente conhecida 'End/6sung'. No dizer do jornalista alemão e historiador contemporâneo Gotz Aly, Bankier desenvolveu pesquisas em praticamente todas as áreas representativas da Shoá, partindo sempre das seguintes indagações: "Como foi possível? Por que os alemães? Por que sempre os judeus?" Seus trabalhos partiram dos estudos referentes à sociedade alemã entre os anos 1933-45: Postura dos fugitivos alemães no exílio, face às políticas raciais de Nuremberg. Participação de um elevado número de comandos europeus [não somente alemães] na morte dos judeus. Encarava os Mordkommandos [unidades de assassinos] como pessoas estranhas. Questionou o grau de escolaridade desses homens, e chegou mesmo a levantar dados sobre seu consumo de álcool. Historiador cético e pessimista, não se rendia às respostas fáceis e simplistas. Para Bankier, era crucial procurar compreender o funcionamento da sociedade alemã do fim do século XIX ao inícios do século XX. Não concordava com a opinião corrente que professa a existência de um pensamento autoritário no mundo alemão latente desde Martinho Lutero; opinião esta que partilhou com o historiador Saul Friedlânder.
Reconhecimento internacional
Bankier foi muito bem recebido nas várias universidades alemãs em que foi professor convidado. Gótz Aly comenta também que, sendo Bankier amigo dos alemães, se sentia à vontade para fazer suas afirmações com clareza contundente. Bankier é citado em um número enorme de trabalhos acadêmicos não só na Alemanha, como também em outros países. Em '1m Herzen der Fingsternis - Victor Klemperer, Chronist seiner Zeit' [Em meio às trevas - Victor Klemperer, cronista de seu tempo], livro escrito por onze acadêmicos da Universidade da Hamburgo, a respeito do testemunho do filólogo judeu alemão Victor Klemperer, todos fazem referência ao pensamento e erudição de Bankier.
Obra esclarecedora
Em 'Fragen zum Holocaust' - 'Questões sobre o Holocausto', livro que organizou e foi lançado na Alemanha em 2006, Bankier nos brinda com a Introdução e o capítulo - "Por que os alemães? - Foi por acaso, ou haveria algum fio condutor já anterior ao nacional-socialismo?" Segundo Bankier, no século XIX, na Alemanha, e também depois, na República de Weimar, já circulava a ideia de que era desejável o desaparecimento dos judeus. Havia também a mesma ideia na Hungria, Áustria, Romênia e Rússia. Na França, apesar do forte antissemitismo reinante, parte da população queria preservar os ideais da Revolução Francesa. O livro nos mostra ainda como, no século XX, mesmo nos setores mais cultos, perdurava o mito do uso do sangue de crianças cristãs em rituais judaicos macabros na preparação das matzot de Pessach. Bankier, citando os pensadores Ernst Bloch e Walter Benjamin, corrobora o pensamento de ambos: o alemão comum aceitava a crendice popular da importância do retorno à raça pura superior ancestral ariana.
Bankier pesquisou a elaboração da máquina da 'solução final', que era pretensamente mantida como estrito segredo de Estado, designação ilustrada pelo eufemismo Endl6sung. As falhas do severo sigilo, falhas essas acessíveis ao olhar do cidadão comum, eram absorvidas com os recursos do terror ativo e passivo vigentes. Desta forma, Bankier também pesquisou a reação das populações onde as piores atrocidades foram cometidas. Houve casos de total desconhecimento, e outros em que a população aderiu. Outros ainda, em que se mantiveram indiferentes, ou simplesmente apavorados, reconhecendo sua impotência face ao regime nazista.
Papel do educador
Em seu discurso de abertura na 'Sexta Conferência Internacional para Educação e Holocausto', em julho de 2008, em Jerusalém, para 750 educadores de todo o mundo, a maior parte não judeus, Bankier ofereceu uma aula magnífica sobre "A dialética da negação e o caráter único de um fato sem precedentes". Em outras palavras, 'A argúcia da cúpula nazista em fazer prevalecer sua ideologia diabólica' e o trato com seus aliados políticos, bem como sua indiferença e desprezo pela imprensa internacional, que denunciava os horrores praticados pelo sistema nazista.
Sobre a suposta passividade ignóbil atribuída às vítimas dos campos de extermínio e dos guetos, apresento excertos do capítulo de Renato Mezan 'Os que não foram heróis: sobre a submissão dos judeus ao terror nazista' em "O Dever da Memória" de Abrão Slavutzky, em homenagem aos sessenta anos do Levante do Gueto de Varsóvia em 2003:
"Por que os judeus aceitaram morrer assim? Por que não se revoltaram nos trens, ou antes, ou depois, ao desembarcar no destino final? Em primeiro lugar, porque não sabiam o que Ihes ia acontecer. Não havia informação precisa sobre nada na época da guerra, pois os meios de comunicação eram censurados, e quem fosse apanhado ouvindo a BBC podia ter certeza de morte como traidor. A Europa se havia convertido numa imensa ratoeira, e todos eram parte de uma monstruosa engrenagem, cujo alcance Ihes escapava por completo. Dos quinhentos mil judeus que passaram pelo gueto de Varsóvia, menos de cem saíram vivos".
A partir da publicação de Eichmann em Jerusalém" de Hannah Arendt, Bankier pôde denunciar a pecha da até então suposta passividade ignóbil, atribuída às vítimas dos campos de extermínio e dos guetos. Como escreveu 'no jornal espanhol 'El País', José Eduardo C. de Ciria, seu ex-aluno: "David Bankier nos mostrava que a responsabilidade está presente em qualquer ato. Não concordava com o pensamento de que, em situação de totalitarismo, carrascos e vítimas se igualam diante da dominação do aparato estatal. Ao contrário: a razão nos dota de moral, independentemente da existência de Deus."
Homenagem póstuma
Professor Bankier foi um acadêmico estimado com uma abordagem diferenciada na pesquisa sobre a Shoá. A maior parte de seus estudos tratou dos perpetradores e do povo em geral. Antes dele, este campo de pesquisa era estudado somente por alemães, ou pessoas de outras nacionalidades. Bankier deu início aos estudos sob o ponto de vista da História Judaica, procurando entender a dimensão judaica da Shoé, e seu amplo alcance. Dentre as áreas de interesse, aprofundou-se na questão de como 'o antissemitismo se tornou a arma central e mais poderosa usada pelo regime nazista, para manter acesa a chama de sua ideologia, em seu empenho em mobilizar as massas'.
Dentre seu enorme número de publicações, livros, capítulos de livros, artigos, conferências, destacam-se seu livro mais recente, "Hitler, o holocausto e a sociedade alemã: cooperação e percepção", e "Os alemães e a solução final:
opinião pública sob o nazismo", ambos em inglês.
Avner Shalev, presidente do Yad Vashem, em seu obituário a David Bankier disse: "Um dos mais importantes e mais citados acadêmicos na pesquisa sobre a Alemanha nazista. Suas publicações neste campo de estudo representam a pedra angular da pesquisa acadêmica moderna. Professor Bankier foi um palestrante talentoso e dedicado, um ser humano de integridade absoluta, brilhante, aguçado, focado na sua abordagem de pesquisa. Foi um grande amigo, extremamente modesto, um MfNSCH, combatendo o câncer que o aniquilou, recusando-se a interromper suas atividades, trabalhando até o derradeiro dia."
É certo que a falta deste grande mestre já está sendo sentida profundamente.