“Vim para aqui livre e agora saio com uma obrigação”. Ana Pinheiro, professora em Celorico da Beira resumia assim o sentimento que a animava no final de um seminário sobre o ensino do Holocausto direccionado, pela primeira vez, a professores portugueses do ensino secundário, maioritariamente de história. O seminário teve lugar neste mês de Agosto no Yad Vashem, instituto para a memória e ensino do Holocausto, em Jerusalém, e contou com a presença de trinta professores de diferentes escolas do país, seleccionados em colaboração com a Associação Portuguesa de Professores de História.
Porquê um seminário sobre o ensino do Holocausto? Será que se pode “ensinar” o que até hoje permanece não só como a referência do mal absoluto, mas também como algo impensável? E ensinar o quê e como, precisamente? Perguntas de difícil resposta, mas para os professores da Escola do Yad Vashem o objectivo não é de dar respostas simples “não há nenhuma pergunta sobre o Holocausto que tenha uma resposta clara de sim ou não”, mas o de despertar no público alvo, neste caso os professores, a reflexão e
a motivação para o conhecimento sem os quais nenhum ensino é possível.
Qual a principal dificuldade do ensino do Holocausto? É o questionar das nossas certezas mais profundas. O estudo de todo o processo da “Solução final” alertanos não para a “banalidade” do mal – continuo a pensar que o mal não é banal, - mas sim para a sua possibilidade em seres normais, banais esses sim, desde que estejam reunidas algumas circunstâncias, nomeadamente a desumanização das vítimas. É isso que é perturbante: reconhecer que o Holocausto não foi obra apenas de um punhado de homens excepcionais na sua monstruosidade mas que a demência mais aberrante, a mais escandalosa, pôde realizar-se devido à cumplicidade de uma massa de pessoas normais, civilizadas, razoáveis. Normais na medida em que amavam a sua família e o seu país, obedeciam a ordens e achavam que estavam a cumprir o seu dever.
O Holocausto mudou para sempre algumas das ideias chave da nossa civilização, nomeadamente, que através da cultura e da educação o homem se vai aperfeiçoando; que é tanto mais moral quanto mais instruído; que a ciência é uma escola de progresso, racionalidade e aperfeiçoamento. A pior das barbáries teve lugar não num país subdesenvolvido, mas na nação europeia que se orgulhava da mais elevada tradição cultural, com um sistema de ensino altamente desenvolvido. É por tudo isto que a história do Holocausto é uma história difícil de contar. Mas não é possível fazer de conta que Auschwitz não existiu. O Holocausto tornou-se, pela negativa, património da humanidade e todas as pessoas que exercem directa ou indirectamente uma função educativa, nas escolas, em família, nos meios de comunicação ou na formação da juventude, têm como obrigação intelectual e moral de educar contra Auschwitz.
Como? Um dos lemas centrais do Yad Vashem é: “Sob cada nome, um rosto”. Ou seja o número de seis milhões de judeus mortos no Holocausto, só toma sentido através das inúmeras histórias de vida que sistematicamente o Yad Vashem recolhe desde a sua criação em 1953. Contra a desumanização nazi, é fundamental humanizar as vitimas: mais do que como morreram importa contar como viveram. O novo museu é o espelho desta perspectiva e todos os seminários incluem testemunhos de sobreviventes para desvendar uma vivência que de outro modo nos é ocultada: a vivência individual, individualizada, única, tão igual e tão diferente.
No entanto, humanizar a história não basta. É necessário conhecer em detalhe e em profundidade todo o processo da máquina de morte, a sua cronologia, clarificar os conceitos. Não há ensino possível sem um conhecimento aprofundado e permanente. É essa a chave para impedir o sentimento de cansaço e de saturação que por vezes se gera entre alunos e mesmo entre professores e que normalmente é directamente proporcional à ignorância sobre a questão. O trabalho de comparação e relacionamento histórico é outro dos elementos essenciais do ensino do Holocausto, para se poder reconhecer noutros dramas da história uma parte da terrível continuidade que levou ao genocídio nazi, mas também para evitar analogias apressadas que, baseando-se na ignorância e superficialidade e obedecendo a imperativos de propaganda ideológica, se apressam a estabelecer comparações históricas abusivas.
Em Portugal, o estudo e a reflexão sobre o Holocausto são quase inexistentes. Disso testemunharam os professores que participaram no seminário em Jerusalém. Os manuais escolares são um claro reflexo dessa lacuna: os textos que abordam o estudo da Segunda Guerra Mundial incluem, a propósito do Holocausto, alguns extractos do Diário de Anne Frank, de textos de Ilse Losa ou de historiadores vários, mas frequentemente numa perspectiva “utilitarista”, mais como pretexto para passar a outros temas mais consensuais ou “urgentes”, tais como o racismo, ou simplesmente para debater generalidades. A propósito de um texto de Ilse Losa, por exemplo, sobre o regresso de um jovem do campo de concentração, eis a proposta de trabalho dos autores de um manual: “Escreve 3 frases sobre os malefícios deste terrível flagelo - a guerra. Escreve mensagens a favor da PAZ no mundo”. Não está em causa o desejo de paz, em si mesmo, genuíno e vital. Mas este será tanto mais forte quanto maior for o conhecimento das consequências da sua ausência e não através da sua afirmação
repetitiva e esvaziada de conteúdo. O esforço de relacionamento é fundamental no conhecimento da história: para se conhecer a essência dos fenómenos e para que a história se torne na medida do possível, inteligível e significativa e não apenas uma sucessão de acontecimentos sem nexo. Mas esse trabalho de comparação e estabelecimento de relações causais só é possível através do estudo aprofundado de cada fenómeno histórico em si mesmo. Senão apenas gera ignorância, indiferença e cansaço.
É talvez isso mesmo que pretendia exprimir um dos professores ao concluir que: “É preciso estar aqui, em Israel, para compreender o Holocausto”.