Ao princípio não damos por elas, mas pouco a pouco a sua quantidade atrai a nossa atenção. Curvamo-nos e vemos pequenas placas incrustadas no chão, normalmente junto a prédios de habitação. São de cobre ou latão dourado, do tamanho da mão de uma criança, e têm apenas gravados um nome, a data e o local da deportação e da morte: “Aqui viveu Anita Bukofzer, nascida em 1930, deportada em 1943, assassinada em Auschwitz”. Pequenas placas que perpetuam a memória de judeus, ciganos, homossexuais e deficientes, junto das casas de onde foram levados para a morte.
Contrariamente aos grandes memoriais e museus de promoção estatal ou municipal que abundam na Alemanha, esta iniciativa vem “de baixo”, de actuais locatários do prédio ou de antigos vizinhos, de comités de bairro, de famílias das vítimas, de escolas ou de secções locais de partidos políticos... Graças a uma ideia do escultor Gunter Demning, lançada na Alemanha em 1993, mais de 25 mil placas cobrem hoje centenas de cidades e vilas do país. “Estas pessoas foram deportadas sem uma verdadeira resistência dos seus vizinhos”, explica Demnig, “Auschwitz era em geral o destino final, mas o incompreensível e o horror começaram nestes apartamentos e casas”. O projecto chama-se Stolpersteine, literalmente, “pedras nas quais se tropeça” e como tudo o que diz respeito à memória não é unânime. Qualquer cidadão pode solicitar a sua colocação, mas há locatários ou municípios que a rejeitam. Setenta e cinco anos depois, a memória da guerra e do Holocausto ainda não é pacífica.
Para quem se interessa pelas questões da memória, Alemanha é a terra e Berlim a cidade: tropeça-se nela a cada passo. Poucos países expõem as suas feridas tão abertamente. Mas é uma memória relativamente recente. Visitando a Alemanha apercebemo-nos que a maioria dos grandes memoriais, museus e projectos educativos surgiram nas últimas duas décadas, o que mostra que foi preciso o desaparecimento da geração da guerra para haver co-memoração. É o caso do impressionante Memorial da Shoá inaugurado em 2005, do Museu da Topografia do Terror em 2010, do Memorial às Vítimas Homossexuais em 2008, do Centro de Documentação de Nuremberga, inaugurado em 2001 no antigo palácio de congressos do partido nazi, e de tantos outros grandes museus e memoriais. Mas mais do que os grandes museus, cuja função é sobretudo pedagógica, são os próprios espaços que falam por si: a arquitectura totalitária de Nuremberga onde “vemos” Hitler vociferando no Estádio das Paradas Nazis; o ambiente grosseiro das cervejarias de Munique terreno “natural” de gestação do nacional-socialismo; o inferno subterrâneo do campo de concentração de Dora, onde a partir de 1943 os nazis utilizavam o trabalho escravo dos seus prisioneiros na construção clandestina dos mísseis V2 na vã esperança de inverter o curso da guerra; Wahnsee, onde quinze carrascos de gabinete decidem numa hora e meia o aperfeiçoamento da máquina que levará à morte milhões de seres humanos; Grunewald, a estação de deportação onde o bucolismo da natureza contrasta com a violência dos sucessivos transportes de judeus… E o Muro, o Mauer omnipresente que durante 28 anos dividiu vidas, pessoas, famílias da mesma população.
Mas não só de dor e violência é feita a memória recente alemã: entrar no imenso cemitério judaico de Weissensee na parte leste de Berlim, é reviver um tempo que a convivência parecia possível, em que as lápides das campas dos mortos celebram a cultura e o amor à pátria que acreditavam ser sua: “A sua vida foi dedicada ao trabalho, ao povo e à pátria alemã”, lê-se na campa de Max Hirch. Uma secção inteira do cemitério guarda a memória dessa lealdade simbolizada pelas campas de milhares de soldados judeus caídos pela Alemanha durante a primeira Grande Guerra. Por seu turno, a lápide do músico judeu Louis Lazarus Lewandowski clama: “O amor torna o canto imortal”. Uma bela certeza que o imenso carreiro reservado às lápides sem campas dos assassinados pela barbárie nazi desmente cruelmente. Na verdade, o ódio emudeceu o canto, mas felizmente Lewandovski nunca o chegou a saber … No mesmo cemitério, uma área reservada aos judeus da ex-URSS que hoje compõem a comunidade judaica da Alemanha traz-nos ao presente. Com as suas flores e dourados lembram a influência ortodoxa russa e, por contraste, o fim de uma época…
A Alemanha é um terreno inesgotável para a reflexão sobre a memória. Da imensa explosão de museus e memoriais dos anos 90 até hoje, uma das poucas certezas com que ficamos é que a memória só se torna colectiva e consensual quando politicamente inócua, quando os principais actores já não estão e as feridas saram. Ou seja quando se transforma em memória cultural.
No final de mais este “seminário sobre rodas” organizado pela Associação Memória e Ensino do Holocausto – Memoshoá – e sabiamente orientado pelo historiador do Yad Vashem, Avraham Milgram, perguntámos a Bárbara Distel que foi directora do campo de Dachau durante 30 anos: serve todo este trabalho de memória de lição para o futuro? “Não sei”, respondeu com um doce sorriso, “éramos ingénuos quando clamávamos ‘nunca mais!’. Mas não temos alternativa, mas não há alternativa”, repetiu.
No museu judaico de Berlim, à pergunta feita aos visitantes no âmbito de um pequeno inquérito: “Crês que no teu círculo de amigos há pessoas com preconceitos contra os judeus?”, 45 por cento respondia afirmativamente. Não há de facto alternativa…