Conta-se que em Lancut, na Polónia, havia em tempos um judeu muito pobre que frequentava a sinagoga. Pouco a pouco foi enriquecendo e pôde finalmente realizar o seu maior sonho: dispor de um assento junto ao Grão Rabino, alvo da sua veneração. Mas a sua sorte virou de novo e o homem tornou a empobrecer sendo obrigado a recorrer ao crédito dos seus correligionários. No entanto, e apesar das pressões destes, recusava-se terminantemente a ceder o seu lugar na sinagoga, até que uma noite, na véspera do Yom Kipur, Dia do Perdão e da Expiação, um dos seus credores sentou-se no seu lugar. Nesse preciso momento, um imenso brado ecoou em toda a sinagoga, fazendo estremecer o coração dos presentes: era sem dúvida um sinal divino! A comunidade concluiu que a sua sinagoga estava debaixo do olho de Deus e que portanto nunca seria destruída. E o rico homem pobre pôde assim guardar o seu lugar Esta lenda judaica, reportada por Martin Buber, célebre filósofo judeu alemão contemporâneo, é reveladora da consciência do carácter excepcional da sobrevivência da sinagoga durante a ocupação nazi. De facto, obedecendo à regra de ouro nazi, apenas eram conservadas as sinagogas que podiam ter alguma utilidade: as raras que não foram destruídas, serviram de estábulos, cavalariças ou armazães. Hoje, numa Lancut esvaziada dos seus judeus, a belíssima sinagoga barroca construída em 1761 continua a desafiar o tempo e sobretudo os homens: depois de incendiada e usada pelos alemães como armazém de cereais, foi a vez do poder comunista local propor a sua destruição em 1956. Mas, mais uma vez, a sinagoga teimou em sobreviver tendo sido finalmente restaurada em 1980 como memorial da presença judaica. Uma presença que em 1880 rondava os 40 por cento da população e que hoje desapareceu por completo.
Acabo de chegar da Polónia, de uma viagem de estudo organizada pela recém-criada Associação Memória e Ensino do Holocausto cujo objectivo é contribuir para o conhecimento, a reflexão e o ensino do tema, trabalhando essencialmente com professores nas escolas. Realizada com o apoio do Ministério dos Negócios Estrangeiros – Portugal é parte hoje da Task Force Internacional para a Memória do Holocausto – a viagem reuniu um grupo de portugueses, professores na sua grande maioria. Não foi a minha primeira visita à Polónia e aos seus campos de extermínio, mas foi certamente desta vez que sob a sábia orientação de Avraham Milgram, historiador e investigador do Yad Vashem, ficou mais patente o contraste gritante entre a riquíssima presença judaica anterior à IIª Guerra e a sua total destruição pela sanha nazi.
A Polónia é o território por excelência da destruição do judaísmo europeu. Se a Alemanha foi a terra da “Solução Final” e da planificação do extermínio, a Polónia foi a terra da sua concretização. O seu solo está coberto de sangue e o clamor das vitimas ecoa nos nossos ouvidos sem cessar, através das inúmeras valas comuns, dos campos de extermínio, das ruínas de toda uma civilização. Mas a Polónia não é apenas isso. Milgram soube revelar a terra de brilhante cultura judaica, nomeadamente a partir do século XVI. Terra de gigantes das letras, das ciências, de utopias, de uma língua (o Iídiche) e de uma literatura impar: uma visita ao cemitério judaico de Varsóvia permite-nos encontrar as campas de utopistas como Ludwik Zamenhoff, médico e criador do Esperanto, de Esther R. Kaminska, actriz e “mãe” do teatro iídiche, dos grandes escritores, Isaac Peretz e Solomon Zangwill, de rabinos e sábios da Torá e do Talmude. É na Polónia que nasceram dois dos prémios Nobel da literatura do século XX, Isaac Bashevis Singer e Shmuel Yosef Agnon, e mulheres da têmpera de Rosa Luxemburgo. Uma terra onde três milhões de judeus viveram de forma relativamente pacifica em grandes cidades ou pequenas aldeias, cultivando um estilo de vida original e único até à hecatombe da IIª Guerra.
Por isso, mais chocante ainda é a constatação da destruição operada pela obsessão genocida nazi: hoje a população judaica na Polónia é residual, as sinagogas, escolas e bibliotecas que ainda estão de pé tornaram-se museus ou instituições polacas, e nos antigos bairros das cidades ou nas aldeias apenas umas vagas lápides lembram uma presença de séculos. A implacável máquina de morte nazi exterminou o judaísmo polaco e europeu em pouco mais de três anos: Belzec, Sobibor, Treblinka e depois Auschwitz foram o instrumento sinistro desse aniquilamento. Na sua sanha destruidora e apesar da derrota iminente, os nazis ainda organizaram entre Maio e Junho de 1944, o transporte e o extermínio em Auschwitz de meio milhão de judeus húngaros, até ali relativamente ao abrigo... Olhando de frente para a dimensão da catástrofe, não há subterfúgio possível: Hitler perdeu a guerra, mas ganhou a batalha do extermínio do judaísmo europeu.
Para uma Polónia simultaneamente vítima e terra da destruição onde não poucas vezes o antisemitismo levou à colaboração, a construção de uma memória colectiva não é fácil. Durante o regime comunista, a visão de uma Polónia mártir e heróica apagava a identidade judaica de 95 por cento das vítimas do Holocausto. Ainda hoje, em Birkenau, uma placa colocada em 1967 celebra “os heróis de Auschwitz que aqui morreram combatendo o genocídio nazi em nome da liberdade e dignidade do homem, pela paz e fraternidade das nações”, apagando deliberadamente que o milhão e meio de mortos em Auschwitz não foram assassinados pelo seu combate pela liberdade, mas sim por serem judeus... Pouco a pouco, no entanto, e nomeadamente depois do fim do regime comunista, a Polónia tem vindo a integrar a narrativa judaica e sobretudo a fazer reviver a memória judaica como parte da identidade polaca. Museus, institutos de investigação, ensino nas escolas, concertos de música judaica, teatro iídiche celebram hoje essa cultura. Não trazem de volta a vida irremediavelmente perdida, mas tentam pelo menos guardar a memória do passado.
Num fim de tarde em Treblinka, no silêncio das dezassete mil pedras gravadas com os nomes das comunidades destruídas, ergueu-se subitamente o canto da esperança, o hino de Israel. Eram soldados do exército israelita que prestavam homenagem às vitimas. Olhando para eles, todos nós sentimos que do seio daquele mundo de destruição, a fénix foi capaz, pela milésima vez, de renascer das suas cinzas...